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Emergência: Desabafo de operadora do CODU ao não conseguir socorro |
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A inexistência de meios e a falta de preparação dos bombeiros voluntários de Favaios e de Alijó provocaram um atraso no salvamento de António Moreira, falecido anteontem de madrugada, na sequência de uma queda nas escadas de sua casa, em Castedo, Alijó.
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No momento dos telefonemas do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) para as duas corporações, de forma a encaminhá-las para o local do acidente, só se encontrava disponível um operacional em cada quartel de bombeiros. Através da conversa mantida entre o CODU e as duas corporações, à qual o CM teve acesso, é possível constatar-se a falta de preparação dos dois bombeiros contactados.
Na primeira tentativa de obter salvamento para António Moreira, a operadora do CODU chega a afirmar, incrédula – “Valha-me Deus, estou lixada” – referindo-se ao bombeiro que a atendeu em Favaios. Questionado sobre o episódio, o segundo comandante Luís Narciso considera ter existido “um mal-entendido”, explicando que se ausentou temporariamente do quartel: “Fui a casa, que fica perto, ver o meu filho, que estava doente, e disse ao colega para me ligar se houvesse alguma comunicação. Ele recebeu a chamada, ficou muito atrapalhado e não me ligou.” Ainda assim, alega que “não houve negação, nem falta de meios ou pessoal para socorrer.”
Ao perceber que seria mais fácil recorrer aos Bombeiros de Alijó, a operadora fez a ligação, mas apercebeu-se de que também nesta corporação se encontrava uma só pessoa. “Tem de tocar a sirene?! Ó valha-me Deus”, comenta, após perguntar ao bombeiro o que faria se deflagrasse um incêndio a meio da noite.
Segundo relatos de vizinhos e familiares da vítima, os bombeiros de Alijó terão chegado 30 minutos após o acidente. No entanto, por falta de conhecimento e de meios não puderam socorrer António Moreira. “Quando recebemos a chamada, pensávamos que era para ajudar Favaios com homens. Na altura não tínhamos. Além disso, a zona é deles”, disse ao CM o comandante António Fontinha. “Depois do INEM nos explicar, fomos socorrer a vítima. Não podia ser o telefonista a fazê-lo. Não compreendo também porque o CODU esteve oito minutos em conversa com os Bombeiros de Favaios”, acrescentou.
INEM TENTA ENVIAR BOMBEIROS PARA SOCORRER HOMEM
(Depois da chamada de emergência, outra operadora do CODU do INEM telefona para os Bombeiros de Favaios)
Operadora (O): – Boa noite. É do CODU do INEM. É uma saidinha para Castedo.
Bombeiro de Favaios (BF): – Diga.
O: – Para o Bairro de Santo António, n.º **. Diga-me uma coisa: a VMER de Vila Real é a mais próxima, não é?
BF: – A de Vila Real já está fechada.
O: – Quanto tempo demora a viatura médica?
BF: – Ainda demora até ao Castedo. Vila Real...
O: – Não. De Vila Real a Castedo?
BF: – Ai. De Vila Real a Castedo? Sei lá.Três quartos de hora.
(A operadora do CODU fala com uma médica que se encontra no CODU)
O: – Doutora, a VMER demora três quartos de hora, mas também não tem coiso aberto...
Médica (M): [imperceptível]
O: – Mas que quer que ponha? VMER não disponível?
M: [imperceptível]
(Volta a falar com os Bombeiros de Favaios)
O: – Não há nenhum centro de saúde aberto?
BF: – Não, aqui está fechado.
O: – Vamos mandar a VMER de Vila Real. Isto é um masculino, de 44 anos. Quem nos ligou diz que caiu das escadas, deitou sangue pela boca, parece estar morto.
BF: – Diga. Estou?
O: – Sim. Está-me a ouvir?
BF: – Estou.
O: – Estou. Está-me a ouvir?
BF: – Estou...
O: – Ó meu Deus! Eu estou a ouvir. Está-me a ouvir?
BF: – Diga, diga...
O: – Ouviu o que eu disse até aqui ou não ouvi nada?
BF: – Não ouvi. Desculpe lá, estou a ouvir de telemóvel.
O: – Vou mandar vir a VMER de Vila Real. O senhor caiu pelas escadas. Quem ligou diz que já está morto!.
BF: – Ah!... Pois, e agora o que quer que se faça?
O: – Ficha CODU 32...
BF: – Espere aí, que eu agora não tenho aqui caneta!!!
O: – Eu vou ajudá-lo. Vou passar a VMER de Vila Real para ajudar a chegar ao local. Não desligue. (...) Valha-me Deus, estou lixada.
(A operadora do CODU liga para a médica de serviço à VMER de Vila Real)
Médica da VMER (MV): – Sim?
O: – Olá, doutora. É uma saída, para longe.
MV: – Para onde?
O: – Castedo, Alijó. (risos)
MV: – Ok. O que é?
O: – Um senhor de 44 anos caiu pelas escadas. Deitou sangue pela boca. O contactante diz que ele está morto!
MV: – Morto?
O: – Sim. Diz o irmão.
MV: – Pois, coitadinho.
C: – Mas com uma calma gélida, segundo a minha colega.
MV: – Hummm...
O: – Eu vou passar-lhe os Bombeiros de Favaios para dar uma ajudita.
(A operadora do CODU retoma a conversa com os Bombeiros de Favaios)
O: – Estou, Favaios?
BF: – Estou, estou.
O: – Ajude aqui a viatura médica, se faz favor..
BF: – Sim, sim, ora diga lá então..
O: – Estão em linha, pode falar.
(Bombeiro de Favaios e a médica da VMER de Vila Real falam um com o outro)
MV: – Boa noite.
BF: – Boa noite.
MV: – Boa noite. Podiam dar-nos algumas indicações? Onde é o...
BF: – Como, como?
MV: – Se nos podia dar algumas indicações. Onde é...
BF: – Ora bem. Eu não sei como é que vou explicar. Chega ali a Alijó, vai adiante, ao pé das bombas de gasolina. Há uma rotunda à esquerda. Corta à esquerda, para ir ao Intermarché. E segue sempre em frente para o Castedo. Sempre estrada fora.
MV: – Para onde?
BF: – Para o Castedo.
MV: – OK. Pronto, obrigado.
BF: – E agora, o que faço?
MV: – Diga?!?
BF: – O que faço? É preciso ir lá eu?
MV: – (risos). Ó senhor, nós vamos a caminho.
(A operadora do CODU reentra na chamada telefónica)
O: – Ó, Favaios!
BF: – Diga, diga.
O: – Obviamente é para lá ir a ambulância para iniciar suporte básico de vida. Se estiver em paragem. Digo eu.
BF: – Olhe, mas arranco para lá eu?
O: – ... (risos).
BF: – Estou?
O: – Peço desculpa. Eu estou a falar com uma corporação de bombeiros, não estou?
BF: – Está sim. Mas estou a atender o telemóvel.
O: – Então eu estou a dar-lhe uma saída, e pergunta-me a mim o que vai fazer? Nunca tal me aconteceu.
BF: – Desculpe lá, desculpe lá.
O: – Claro que tem de ir para o local com a ambulância e com o colega.
BF: – Então qual é o número?
O: – 32703.
BF: – Posso desligar, CODU?
O: – Pode, pode.
BF: – Arranco então. Vou já arrancar para lá.
O: – Sim, arranque para lá. Avalia a vítima e, quando tiver dados, dá a informação para cá para o CODU.
BF: – Eu estou sozinho.
O: – Está sozinho?
BF: – Estou.
O: – Então como vai sair uma ambulância sozinha?!.
BF: – Não tenho mais ninguém agora aqui.
O: – Como não tem?
BF: – Então como vou fazer!?!
O: – Espere aí! (dirigindo-se para a médica da VMER) Ó doutora, Favaios está sozinho, não tem mais ninguém... (volta a falar com o bombeiro) Não arranja outro tripulante?
BF: – Quem é que vou arranjar agora?!
O: – Qual é a corporação mais próxima além de vocês?
BF: – Só Alijó.
O: – Quanto tempo para chegar ao local?
BF: – É só ir buscar a ambulância e arrancar!
O: – É só ir buscar a ambulância e arrancar! (risos em fundo)
BF: – Cinco minutos.
O: – Mas quanto tempo demora a chegar ao local?
BF: – Daqui ao local são sete a oito minutos.
O: – Dez minutos. Qual é a corporação mais próxima? É Alijó?
BF: – É Alijó.
O: – Quanto tempo Alijó demora a chegar ao local?
BF: – Mais ou menos a mesma coisa. É pegado.
O: – Então vou mandar Alijó. Vou pedir ajuda, para você ajudá-lo a chegar ao local. (desabafo para alguém que está ao lado) Tu estás a ver? Ele está sozinho. “O que é que eu faço?”, pergunta-me ele.
(A operadora do CODU telefona para os Bombeiros de Alijó)
Bombeiro de Alijó (BA): – Estou sim...
O: – Uma saidinha para Castedo.
BA: – Castedo é Favaios!
O: – Pois é. Mas Favaios está só com um senhor e a ambulância. E a vítima pode estar em paragem respiratória. Vai a viatura médica de Vila Real. Não posso enviar uma ambulância só com uma pessoa para fazer uma emergência médica.
BA: – Aqui também não tenho ninguém.
O: – Não tem aí ninguém.
BA: – Não. Só se chamar...
O: – Então...
BA: – Aqui só fico eu de noite.
O: – Só fica o senhor sozinho de noite na corporação? Então se há um incêndio?
BA: – Tenho de tocar a sirene.
O: – Tem de tocar a sirene. Ó valha-me Deus!
BA: – Minha amiga, não temos meios.
O: – (dirigindo-se à médica da VMER) Ó doutora, Alijó idem idem...
BA: – Mas eu vou chamar um colega meu.
O: – Ó doutora. Eu posso mandar ir o de Favaios e o de Alijó. (dirige-se ao bombeiro) O senhor pode ir?
BA: – Vou chamar o meu colega.
O: – Vai chamar o colega. Pronto, então siga. Vá. Bairro de Santo António. n.º **
BA: – Qual é o número da ficha?
O: – 32706, Sabe onde fica?
BA: – Sei, sei. Vou já ligar.
O: – Pronto, obrigada.
(chamada termina após nove minutos e meio, minutos depois das 04h00 de anteontem)
CHAMADA PARA O 112
(Uma mulher é atendida por uma operadora do CODU minutos antes das 04h00 de anteontem)
Operadora (O): – Emergência médica, bom dia.
Mulher (M): – [imperceptível]
O: – Mais alto, estou a ouvir muito mal.
M: – [imperceptível]
O: – Castedo, Alijó, Bairro de Santo António nº **. Diga-me o número de telefone caso a chamada vá abaixo.
M: – *********
O: – *********. Minha senhora, ouça o que lhe vou dizer. O que se passa aí?
(Um irmão de António Moreira toma o lugar da mulher do outro lado da linha)
Irmão (I):– Estou? Estou?
O: – Diga então o telefone daí.
I: - *********.
O: – Pronto, muito bem. Diga-me o que se passa aí.
I: – Podia ligar-me aos bombeiros?
O: – Diga-me o que se passa aí. Para que quer a ambulância?
I: – [imperceptível]
O: – Quer uma ambulância em sua casa?
I: – A vir cá alguém é a guarda [a GNR], não é?
O: – Mas quer a guarda ou a ambulância?
I: – Vale mais a guarda.
O: – Olhe, se é só a autoridade que quer, vai desligar e voltar a ligar 112 e pede autoridade. Se há pessoas feridas, é mais ambulância.
I: – Não, não... Ele morreu.
O: – Morreu?!
I: – Ele deve ter morrido.
O: – E é homem ou mulher?
I: – É um homem.
O: – Com que idade?
I: – Quarenta e nove, mais ou menos.
O: – Quarenta e quantos?
I: – Quarenta e quatro.
O: – Quarenta e quatro anos. Ele já estava doente ou foi agredido?
I: – Ele estava doente.
O: – Doente com quê?
I: – Caiu!
O: – Você é familiar dele?
I: – Sou irmão.
O: – O seu irmão já estava acamado?
I: – Não. Estava em pé e tudo. Foi em casa. Ia a descer as escadas e caiu.
O: – Ao descer as escadas caiu. Foi hoje a queda?
I: – Foi, foi agora de noite.
O: – O senhor disse que ele morreu.
I: – É. Está morto. Deitou muito sangue pela boca.
O: – Mas diga-me uma coisa: isso mesmo agora?
I: – Foi. A minha mãe estava a dormir e deu conta.
O: – Ele não respira?
I: – Não.
O: – Confirme-me a morada.
I: – [imperceptível], Alijó.
O: – Como?
I: – Castedo, Alijó.
O: – O senhor está a dizer que o seu irmão faleceu e está tão calmo. O senhor não está a brincar com o 122, pois não?
I: – Não. Não estamos a brincar. Ouve lá.
O: – Neste momento o seu irmão não se mexe e não respira?
I: – Não, não, não.
O: – Olhe, vai desligar que eu daqui a um bocadinho volto a ligar. Pretendem ambulância e autoridade. É isso?
I: – Sim, sim.
O: – Para que querem a autoridade?
I: – Quer dizer que não se vai tocar nele nem nada. Não é?
O: – O quê?
I: – Não se pode tocar nele.
O: – Fique a aguardar a chegada de ajuda. Boa noite.
(a chamada termina depois de quatro minutos de conversa)
UM CERTO PAÍS: (A Opinião de Manuel Catarino, Chefe de Redacção)
Aconversa telefónica entre a operadora do Centro de Orientação de Doentes Urgentes e um bombeiro de serviço no quartel de Favaios parece tirada de um filme cómico – mas desgraçadamente verdadeira e trágica. Ao pedido de socorro, ele responde com um desabafo revelador do amadorismo e da impreparação de quem tem a missão de salvar vidas. O triste bombeiro, perante a necessidade de mandar avançar uma ambulância pergunta-se desolado: “E agora, o que quer que faça?” Estava sozinho de serviço no quartel. O mesmo em Alijó – um único bombeiro de plantão só para atender o telefone. Tenho a certeza de que o exemplo de Favaios e de Alijó não se estende à generalidade dos corpos de bombeiros portugueses: será a excepção que mancha a regra. Mas esta história é o retrato fiel de um certo País – um País miserável, abandonado, relapso e irresponsável. |
Autor: José Palha |
Publicado em: 24-01-2008 16:04:38 (2842 Leituras, Votos 375) |
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