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Venceu as chamas |
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Rui Correia, bombeiro sobrevivente do incêndio que ocorreu em Mortágua em Fevereiro do ano passado, aceitou partilhar o que lhe vai na alma. No corpo, as marcas das queimaduras deixam adivinhar o pesadelo que matou outros quatros bombeiros.
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Quando se dirigiam para o local onde se registou o acidente que vitimou os seus colegas bombeiros dos sapadores de Coimbra, nem sequer passou pela cabeça de Rui Correia que estava prestes a viver o maior drama da sua vida.
Como o vento que se fazia sentir era invulgarmente forte, falaram dos métodos de segurança a utilizar mas, no íntimo, sentiam-se preparados para combater as chamas que alastravam como demónios à solta.
Assim que saíram da viatura foram rodeados pelo fogo. Nem sequer tiveram tempo de pegar nas mangueiras. Rui Correia recorda que começaram a fugir em direcção a um local já queimado mas, estranhamente, três das quatro vítimas apareceram dentro da viatura. Provavelmente, no meio das labaredas e do pânico, decidiram voltar para trás.
“Eles não estão cá para se defenderem e, por isso, chegou a hora de ser eu a falar. Disseram que eles nunca chegaram a sair do carro de incêndio, mas isso é mentira. Estávamos todos juntos até chegarmos a uma parte em que as chamas não nos deixavam ver uns aos outros. Acredito que eles, quando se viram rodeados pelo fogo, tenham pensado que dentro do carro teriam mais hipóteses de sobreviver”.
Rui Correia saiu do meio das chamas com queimaduras de segundo e terceiro grau nas mãos e nos joelhos, exausto, parecendo que aqueles duzentos ou trezentos metros tinham correspondido a uma maratona. Sentou--se com dores. Tentou, sem sucesso, chamar os colegas. Foi o comandante Simões, de Penacova, que o socorreu até à ambulância. O cenário era dantesco.
“Foi algo de imprevisível. É um erro dizerem que estávamos mal colocados. O fogo estaria a uns quatrocentos metros da viatura. Quando saímos para atacar pelos flancos já estávamos rodeados por ele. Nunca vi um vento tão forte. As copas das árvores quase que batiam no chão. Se fosse hoje voltaria a optar pelo mesmo local porque não é humanamente possível prever o efeito chaminé”, desabafa. Foi como se o fogo se tivesse atirado a eles.
No centro de Saúde de Mortágua disseram-lhe que os colegas estavam a ser tratados. “Comecei a achar que era história. De Mortágua a Coimbra a minha cabeça fazia muitos filmes”. Suspeitava que os amigos tinham falecido, o que lhe foi confirmado pelo pai, também ele bombeiro. Olhos nos olhos, emoção à flor da pele.
Ainda hoje se sente a dor na expressão do jovem bombeiro sobrevivente, 28 anos de vida.
Dois dos falecidos, Luís Teixeira, de Semide, e Acácio Silva, de Rio de Galinhas, ambos na casa dos vinte anos, tinham entrado nos bombeiros no mesmo dia de Fevereiro de 2001. Um ano depois, juraram bandeira juntos. Quatro anos mais tarde, no mesmo mês, o acidente também vitimou José Lapa e Adelino Oliveira, chefes da equipa.
Da situação vivida, Correia tirou uma lição: “A maior homenagem que se pode fazer a um colega que morre ao nosso lado é continuar. Ainda hoje, custa-me imenso vir trabalhar ”, confessa.“Não há um único dia que passe que eu não reveja mentalmente os últimos minutos com os meus colegas e amigos. Todas as noites, antes de dormir, vejo os seus rostos. Mas nunca em sofrimento. A última recordação é invariavelmente boa”, revela, publicamente, pela primeira vez.
Todavia, o trauma vivido marcou-o de saudades e receios. Nunca mais conseguiu combater um fogo e, “mesmo que tenha ido a duas ou três situações para me começar a ambientar, sinto que não é, nem vai ser, fácil”. O pequeno acto de caminhar numa floresta deixa-o perturbado, “remexido por dentro”. Não é medo o que sente. É respeito, luto e dor. “Dentro de mim tudo está ainda muito fresco. É complicado”, revela, brilho tímido nos olhos.
NENHUM APOIO
Não deixa de ser estranho, mas só recentemente é que os familiares das vítimas receberam a indemnização a que tinham direito. “Até ao fim do ano que passou, isso estava muito complicado. Depois ouvi dizer que tinham resolvido qualquer coisa. Isto porque estão a tentar atribuir a culpa ao chefe da viatura, que também faleceu. O que não entendo é o porquê de só me terem chamado uma vez para prestar declarações.”, considera, incrédulo.
“No recente acidente da Guarda morreu um português e cinco chilenos. Quem está dentro dos bombeiros diz que os chilenos são os ases a trabalhar com material sapador. Mas só o são porque, ao contrário do que acontece em Portugal, têm boa formação. Aqui, há bombeiros voluntários sem rigorosamente nenhum tipo de aprendizagem”, denuncia, fazendo crer que os bombeiros voluntários são privilegiados face aos sapadores.
“Por exemplo, enquanto no nosso caso foi apontado erro humano como causa para o acidente, na Guarda falou-se de tudo menos de negligência. Os mesmos comandantes de corporações de voluntários que agora dizem que foi do vento e do terreno, quando se deu o nosso problema puseram-se a fazer o filme da coisa, afirmando que estávamos mal posicionados e que não tínhamos nada que estar ali. Era eu, que vivi a situação na pele, que tinha de dar o depoimento e não eles que nem sequer estavam lá.
Apesar de tudo, a voz do Rui reflecte tranquilidade e uma grande paz interior. Ele, que, com queimaduras visíveis, foi conduzido ao centro de saúde de Mortágua sem nenhuma assistência nem ninguém a acompanhá-lo, seguindo daí para o Hospital da Universidade de Coimbra, deitado numa cama sem uma mão amiga que confortasse a sua dor. Ninguém a seu lado. Nenhum apoio.
“Podia ter entrado em estado de choque que ninguém me iria socorrer”, desabafa angustiado. Ele que sofreu na pele as dores e que aponta o dedo do fulcro da questão: “Não culpo os bombeiros. A culpa é do sistema”.
Rui Correia está convicto que é urgente que se profissionalizem todos os bombeiros. “Isso pode demorar anos a fazer mas é importante que, aos poucos, se tomem medidas nesse sentido”. Pede, essencialmente, que se acabe com os voluntários. “Devem ser todos profissionais, ter formação adequada, condições de trabalho, preparação. Uma pessoa que tem um emprego e família não tem tempo para instruções ou formações”.
CHEGA A SER DOLOROSO
Rui Correia nunca antes tinha passado por momentos delicados com colegas de profissão mas esteve, demasiadas vezes, envolvido com vítimas. Mortos, feridos, gente a falecer nos seus braços. “No início foi muito complicado. É extremamente difícil uma pessoa ver um ser humano a sofrer e não poder fazer mais do que aquilo que está ao nosso alcance”.
Por vezes, chega a ser doloroso. “Por exemplo, situações de INEM, de pessoas que acabam por falecer perante a nossa impotência, é algo que nos marca para sempre”. É preciso estofo, “queda e muito treino”. Como quem se conforta a si mesmo, o bombeiro, natural de Coimbra e residente na Lousã, volta a repetir o seu principal lema: “O que eu mais quero é ajudar os outros. É por isso que estamos cá. Só é pena é trabalharmos tanto”.
Infelizmente, as estatísticas provam que o número de mortos e de acidentes, sobretudo de trabalho e de viação, continuam a aumentar, o que representa um acréscimo de actividade para os bombeiros.
PORTUGAL ACIDENTADO
É fundamental que se sensibilizem as pessoas para o lado dramático dos números. Portugal é um dos países do Mundo onde acontecem mais acidentes. Porque não começar a prevenção nas escolas? Rui Correia concorda a cem por cento: “Se os adolescentes têm no seu plano curricular a disciplina de Religião e Moral porque não ter também uma de Sensibilização, onde aprenderiam, por exemplo, as regras básicas do socorrismo e do combate a incêndios”.
E exemplifica: “Um civil vai ali no passeio e vê uma pessoa a entrar em paragem cardíaca. Se tiver a capacidade para fazer um simples gesto que seja pode salvar aquela vida”.
Nota-se que ainda está algo traumatizado com o problema que viveu. Supera-o com essa rara vontade de ajudar os outros a viverem. Percebeu, depois do acidente, que “nós não somos nada nem ninguém. Agora estamos aqui e daqui a cinco minutos não sabemos. Por isso, temos de aproveitar a vida ao máximo, de maneira equilibrada”.
Optimismo não falta ao nosso bombeiro sobrevivente. Sente-se um raro espírito de solidariedade: “Sempre fui uma pessoa positiva, mas depois daquilo tornei-me ainda mais. “E tem boas razões para isso: daqui a três meses vai nascer a sua primeira filha.
VIDA POR VIDA
TRAGÉDIAS DE UMA PROFISSÃO DE RISCO
Major José Almeida, comandante dos Bombeiros Sapadores de Coimbra, considera que o acidente que vitimou quatro dos operacionais em Fevereiro do ano passado “afectou e continua a afectar” os seus homens.
Ele sabe que são as contingências de uma profissão de risco em que não raras vezes têm de pesar as decisões na balança da consciência. Porque, quando se têm populações isoladas envoltas em lágrimas e fogo, quando se ouvem gritos dilacerantes de socorro, não se podem olhar a meios para atingir o primeiro fim sempre em vista: socorrer.
“Por vezes corremos o risco de nós próprios sermos vitimados por um acidente grave, e eu, como comandante, tenho de assumir toda a responsabilidade. Sabemos que na nossa profissão umas vezes corre bem, outras corre mal”, considera o comandante. Porque, “quando se trata de vidas, os outros estão sempre em primeiro lugar”.
No entanto, sabe que é preferível deixar arder um hectare de terreno do que perder um bombeiro. “Sabemos que a natureza é fundamental, um metro quadrado de zona verde é importantíssima, mas uma vida ainda é mais. Para o ambiente faz imensa falta uma floresta. Mas, ao fim de alguns anos, mesmo que parcialmente, ela é reposta. Uma vida humana nunca mais é reposta”.
Nota-se que o comandante já viveu situações extremas. O olhar é opaco, reflecte a perda de gente com quem aprendeu a conviver. Mesmo assim, pede aos bombeiros portugueses que, “apesar dos acidentes e das mortes, nunca esqueçam que o que mais nos pode valorizar é o sentirmo-nos úteis”. Palavras que fazem jus ao lema dos bombeiros portugueses: “Vida por vida”. Porque a vida não tem preço.
FILME DA TRAGÉDIA
COMO TUDO ACONTECEU
O responsável pela morte dos quatro bombeiros em Fevereiro do ano passado quando combatiam um incêndio num eucaliptal que deflagrou em Vale de Paredes, Mortágua, terá sido as fortes rajadas de vento. A causa apontada para o incêndio foi problemas nas linhas de média e alta tensão.
Numa zona em que o terreno era bastante íngreme, o salvamento das vítimas parece ter sido dificultado por uma volta do vento, que criou uma espessa nuvem de fumo. Possivelmente desorientados, os bombeiros não conseguiram escapar ao avanço do fogo que mudara repentinamente de sentido.
Na altura da tragédia, Duarte Caldeira, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, salientou que “o dispositivo de combate aos incêndios florestais deve ser repensado”. Caldeira acrescentou ainda que “os três elementos não saíram sequer do veículo”. Uma afirmação que é aqui, finalmente, contestada pelo único sobrevivente desta horrível tragédia. |
Autor: José Palha |
Publicado em: 18-07-2006 17:27:31 (3353 Leituras, Votos 600) |
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